Cidadãos em guerra

Numa guerra, cada parte inflige dano à outra, com o propósito de a subjugar e de a controlar em maior ou menor medida. Até agora, a visão tradicional sobre o que é a guerra era a de que a ação era fisicamente destrutiva, com tiros, explosões, sangue, morte e coisas do género. A guerra tomará sempre muitas formas, e a forma tradicional de tanques, helicópteros e mísseis continuará a existir. Mas… e se houvesse agora uma guerra com outra natureza e com outro modo? Se fosse a guerra agora também baseada no desprezo económico, no quebrar de relações de troca de bens e de serviços, na remoção de confiança e numa espécie de degredo decretado em uníssono pelas pessoas, pelos consumidores, pelos cidadãos privados e por empresas (pequenas e grandes)…

Cidadãos em guerra

Bem… isto é exactamente o que a invasão da Ucrânia pela Rússia nos está a trazer.

Imagine que um dia o supermercado da sua rua fecha as portas, que o banco se vai embora, que já não pode comprar o telemóvel de que gosta, que a empresa onde trabalha saiu do país, deixando para trás milhares de pessoas sem emprego, incluíndo você mesmo. Imagine que o seu país passou a ser vilipendiado e odiado pelo resto do mundo, o mesmo mundo que você sempre apreciou, com todas as coisas que sempre considerou importantes para si.

Ora… é isso que os cidadãos de todas as partes do mundo estão a causar na Rússia neste momento em que este texto é escrito.

Qualquer país usufrui da amizade, da tolerância e da cooperação de todos os restantes países. Para os portugueses, a Espanha, por exemplo, é um ativo importante, com todas as coisas boas que tem, pela boa vizinhança que faz, pelas coisas que nos vende e pelas coisas que nos compra. Os espanhóis adoram as nossas praias, a nossa comida e a nossa hospitalidade. Espanha é um país melhor porque Portugal existe, está aqui ao lado, e é livre de ser diferente. Igualmente, Portugal não seria a mesma coisa se não existisse a Espanha.

Se Portugal se desentendesse com a Espanha, ambos os povos perderiam e ficaríamos todos mais pobres. Ódios surgiriam e a liberdade não seria a que temos hoje.

A nossa liberdade será, talvez, aquilo que sentimos mais que temos de defender. Quando o exército de um país invade outro, cada um de nós não se livra desse exercício subconsciente que dá forma à nossa empatia: e se fossemos nós a ser invadidos? E se fosse o nosso sangue a ser derramado e as nossas crianças a serem mortas?

Num mundo tão interligado como o nosso, com tanta capacidade de trocar ideias e opiniões, o cidadão individual está a surgir no “campo de batalha” com a sua maior arma – o seu poder de escolha como consumidor, como eleitor, como accionista e até como influenciador. Para além da solidariedade e da voluntariedade humanitária, o cidadão activamnete está a dizer às empresas aquilo que elas devem fazer, como devem afastar-se de uma potência beligerante (como o está a ser a Rússia) e mesmo como devem cortar laços económicos com esse país (como o fez a McDonalds e a IKEA, por exemplo.)

Os membros dos governos, os gestores das grandes empresas, os administradores das grandes instituições, todos eles são pessoas individuais que comungam do mesmo sentimento de ultraje pela “atrocidade medieval” que está a ser cometida. Mas, sem o incentivo do seu público, dos seus clientes, dos seus constituintes, nenhuma ‘pessoa de poder’ teria a suficiente força para tomar decisões tão drásticas como as que estamos a ver estarem a ser tomadas.

O que o público ainda não teve a oportunidade de compreender é, por um lado, a dimensão do sofrimento que está a causar ao povo russo, e por outro, as verdadeiras repercussões que os cortes dos laços comerciais irão causar-nos a nós, na Europa.

O povo russo, tal como o povo ucraniano, está a ser vítima das decisões do Sr. Putin. O sofrimento ucraniano está, naturalmente, imensamente maior do que o do povo russo, mas os danos que as sanções internacionais estão a infligir nas pessoas na Rússia não deixam de ser tremendas. Talvez devêssemos refletir um pouco mais sobre isso, antes de ganharmos a convicção simplista de que “os russo merecem”. Como é que “os russos merecem”, quando “os russos”, a maior parte deles, não sabe sequer o que se está a passar?

A convicção internacional é a de que o povo russo será forçado a opor-se ao seu líder se começar a tornar-se intolerável a sua vida do dia-a-dia. E, é claro que isso irá acontecer, porque as pessoas estiveram durante todos estes últimos anos a habituar-se ao estilo de vida evoluído dos europeus e dos restantes países do “primeiro mundo”. Por outras palavras, o sentimento de rejeição da dureza da vida de cada russo acabará por se sobrepor à propaganda do regime a que essa pessoa se encontra sujeita. Pelo menos, essa parece ser a estratégia dominante dos europeus e dos americanos.

Todas as guerras são estúpidas, e todas as acções de guerra, embora sejam por vezes justificadas, são igualmente estúpidas. As sanções que estamos a impor ao povo russo é um acto de guerra, não nos enganemos a esse respeito. E nós, como cidadãos, temos de não perder a empatia por todas as pessoas que, encontrando-se mergulhadas num lago de propaganda de regime e de supressão da imprensa livre, simplesmente não têm como saber o que realmente está a acontecer na Ucrânia. Mesmo que estejamos a infligir todos esses danos no povo russo para tentarmos salvar o povo ucraniano, e que tal seja perfeitamente justificável, não podemos confundir aquilo que representa o Sr. Putin com aquilo que é o conjunto de cidadãos (homens, mulheres e crianças) que vive na Rússia.

No momento em que este texto está a ser escrito, o Sr. Putin ainda não recuou no seu ataque à Ucrânia. Todos os esforços internacionais que estão a ser feitos têm o mérito de tentar aliviar o sofrimento dos ucranianos, mas também têm o demérito de estarem a infligir sofrimento no povo russo.

Provavelmente, a única pessoa que pode parar tudo isto é o Sr. Putin. Eu gostaria que os cidadãos de todos os países também estivessem a pressionar os seus líderes para não pararem as tentativas de diálogo e de persuasão sobre o Sr. Putin. Todos sabemos que o Sr. Putin parece estar apenas a saber comunicar através da força e da violência, mas não deveríamos parar de acreditar no poder das ideias e da boa comunicação.

Eu gostaria que cada russo com quem fosse possível comunicar, estivesse a ser abordado para se manifestar a favor da paz e do bem-estar do seu próprio povo, bem como o do povo da Ucrânia. Se o Sr. Putin não quer que se fale em guerra, pois, fale-se de paz, de prosperidade, de humanidade e de bem-estar das pessoas, dos velhos e das crianças, dos homens e das mulheres, russos, ucranianos, europeus e de todas as partes do mundo.

O ódio deve dar simplesmente lugar à acção determinada e focada em salvar pessoas. Se queremos paz, não deveremos pensar que a conseguiremos através de sentimentos de ódio. A acção legítima e determinada no terreno é absolutamente vital para impedir que o Sr. Putin consiga subjugar uma nação. E, naturalmente, se as sanções forem mesmo necessárias, pois que se continuem a aplicar, mas sempre pondo de lado quaisquer sentimentos de ódio, e sempre buscando um caminho de paz e de diálogo, por muito que esse caminho aparente ser menos útil.

O verdadeiro inimigo não é o povo russo, mas sim o conjunto de delusões que povoa a mente do Sr. Putin.

Os cidadãos de todo o mundo estão em guerra com o Sr. Putin. Nenhuma guerra escapa à categoria de ser estúpida e esta não será excepção. O caminho de saída será sempre ação competente e com determinação, nunca abandonando as tentativas de diálogo e sem ódio do nosso lado, sempre com a esperança de apagar o ódio do lado de lá.